Dia: 4 de outubro de 2017

O novo instituto da tomada de decisão apoiada configura uma alternativa a interdição?

Introduzido em nosso ordenamento pelo Estatuto da pessoa com deficiência (Lei n. 13.146/2015), o novo instituto da tomada de decisão apoiada está previsto no artigo 1.783-A do Código Civil, alterado pela lei.

A tomada de decisão apoiada configura um processo através do qual a “pessoa com deficiência elege pelos menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade”.

A dicção da lei permite, de plano, perceber aspectos essenciais do novo instituto. Trata-se de regime que, tal qual a interdição, se constitui pela via judicial. Não alcança apenas o portador de transtorno mental, mas qualquer pessoa passível de classificação como deficiente, nos termos do Estatuto. A legitimidade é exclusiva da pessoa a ser apoiada, quem indicará as pessoas aptas a prestarem apoio, pautada em vínculo existente. Sendo assim, aspectos como a voluntariedade e a confiança envolvem a tomada de decisão apoiada, o que torna sua configuração parecida com a do mandato, mas não tão distante da interdição em termos procedimentais.

Sem dúvida estamos diante de inovação no regime da incapacidade civil. No entanto, mal a alteração foi colocada em prática pelos operadores do direito, já é alvo de inúmeras críticas, fundadas, especialmente, na expectativa de um via mais simples e informal para o beneficiário, o que, sabidamente, não foi oferecido pelo legislador, considerando a necessidade de processo judicial, que, tudo indica, será longo e burocrático.

Isto porque, da mesma forma que a interdição, antes de se pronunciar, o juiz, assistido por equipe multidisciplinar, após oitiva do Ministério Público, ouvirá o requerente e as pessoas que lhe prestarão apoio.

Além de perícia técnica, o Estatuto manteve a participação do parquet, algo incoerente com a própria tônica esperada do instituto, e até mesmo com o ‘preconceito’ que ele visava erradicar, qual seja: contribuir para o livre exercício das escolhas das pessoas com necessidades especiais, atribuindo maior autonomia à elas.

Com o novo Estatuto, os deficientes deixaram de ser considerados incapazes, tanto que modificados os artigos 3º e 4º do Código Civil. Agora, a pessoa com deficiência é tratada como legalmente capaz, o que não impede que, havendo necessidade concreta, tenha auxílio para o exercício da sua capacidade, mediante adoção de medidas protetivas. Dentre tais medidas estão a tutela, a curatela e a tomada de decisão apoiada, a última enquanto o passo inicial, reconhecidamente acanhada.

Para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com deficiência e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio, os compromissos dos apoiadores, incluindo prazo de vigência e respeito à vontade, direitos e interesses da pessoa apoiada (§1º do Artigo 1.783-A do CC).

Referido termo reforça a autonomia do apoiado, pois ele possuirá apoiadores, não porque alguém os designou, mas porque os elegeu quando e da forma que desejou.

Não há um modelo ou padrão, sendo que o termo será diferente para cada pessoa apoiada, conforme as especificações ali formuladas de forma individual para a realidade daquele sujeito.

A leitura da lei subtende que o prazo do termo é determinado, embora, na prática, a tendência seja perpetuar seus efeitos, situação a ser objeto de estudo e melhor definição.

O requerimento da tomada de decisão apoiada, não implica, por si só, em afetação da capacidade do indivíduo que a requereu. Há legislações estrangeiras que expressamente consideram de forma diferente. O Brasil não repetiu essa idéia ao codificar o instituto. A pessoa apoiada não perde a capacidade. Aqui, no nosso país, acredita-se que o requerimento da tomada de decisão apoiada sirva, tão somente, para reforçar a validade do negócio jurídico realizados pela pessoa apoiada.

E isso acontece porque o §4° do artigo regente inviabiliza a invalidação do negócio pautada na capacidade do apoiado. Os apoiadores podem, inclusive, assinar o instrumento, indicando sua função e, então, trazer maior segurança ao ato.

Mas os apoiadores podem ingerir na escolha do apoiado, isto é, divergir de sua vontade? Em regra geral, a resposta é negativa. Prevalece a escolha do apoiado em detrimento dos apoiadores. A lei excepciona, textualmente, a existência de risco ou prejuízo relevante, caso em que o juiz dirimirá a controvérsia, ouvido o Ministério Público.

A extinção pode ocorrer a qualquer tempo a partir do pedido do apoiado, não cabendo ao juiz denegar tal pedido (§9º). Verifica-se, portanto, que o pedido de tomada de decisão apoiada configura direito potestativo do apoiado. Havendo destituição ou desistência de um apoiador, o apoiado deve ser instado a promover a substituição (afinal, a lei exige dois apoiadores), sendo que, somente se não o fizer, o processo será extinto.

Claro que, a semelhança da curatela, o papel dos apoiadores, como indica o nome eleito pela lei, é proteger e agir positivamente em relação ao apoiado. A destituição é possível nos casos de negligência ou pressão indevida em relação ao apoiado, fato que pode ocorrer a partir de denúncia feita ao Juiz ou Ministério Público, ouvido sempre o apoiado e respeitado seu interesse na substituição do apoiador.

A leitura da lei indica, portanto, que a aplicação do instituto novo, com a finalidade de preservar a dignidade da pessoa com deficiência e a capacidade que possui, demanda, antes de tudo, sensibilidade por parte dos sujeitos processuais, ao lado do conhecimento sobre a deficiência. Isso, embora louvável, pode não ocorrer na prática, comprometendo sua implantação no dia a dia forense.

De outro lado, se o intuito era a substituição dos institutos tradicionais, talvez fosse caso de pensá-lo de forma expandida, ou seja, utilizável para beneficiar pessoas desprovidas de qualquer traço de deficiência, mas impedidos de praticar os atos da vida civil, por questões práticas, como na hipótese de prisão ou doença.

Afinal, como a curatela já veio possibilitada, no próprio Estatuto, enquanto meio “proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso” (Artigo 84, §3º), esse instrumento auxiliar da tomada de decisão apoiada acabou por ganhar uma nuance abstrata e formal, perto do que poderia contemplar.

De toda forma, a adoção de modelos diferentes da curatela, em paralelo a sua manutenção no sistema, não deixar de configurar, sim, um modelo que lhe é alternativo. Sua judicialização, não há dúvida, incute risco de que seja letra morta. Ainda que possa comportar críticas, o esperado é que provoque o desuso gradativo da curatela ou a seleção do uso, enquanto afirmação da capacidade do indivíduo. Sem dúvida, há uma nova abordagem de proteção moldada conforme as características de cada pessoa, mas somente o tempo vai dizer se tal inovação normativa implicou em reforma da realidade, dependendo de nós, operadores do direito e sociedade, sua aplicação e ajustes.

 

Daniela Garcia Mehringer de Azevedo Cunha é advogada, associada ao escritório Celestino Venâncio Ramos Advocacia.

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